Qual a relação entre chifres e dentes? Aposto que essa não é uma associação tão usual de ser estabelecida, não é mesmo?
Quando pensamos em chifres de veado, usualmente nos lembramos do padrão ramificado (lembra do pai do Bambi?) como o ‘look’ mais clássico, não é mesmo? Um belo par de chifres, sem dúvida, é a mais pura expressão de uma boa saúde. Isso porque o investimento em chifres tem alto custo para animal, principalmente para os cervídeos com uma dieta herbívora pobre em cálcio, mineral importante para o crescimento deste apêndice. Calcule a necessidade de alimentação para a produção dos mais de 40 kg de chifres palmados que podem atingir mais de 1.5 m de comprimento, dos Alces alces, maior cervídeo existente?! Isso é pós-doc de chifre gente. Fala sério!
Mas, será que este chifre volumoso, nada discreto, sempre foi a condição da família Cervidae? E que relação poderia haver entre chifres e dentes?
Não só nem sempre foi; como não será! “Hein”? Esclareço (ou tento, ao menos):
Relação entre Chifres e dentes nos cervídeos primitivos
Os primeiros representantes da família Cervidae surgiram na Eurásia no Mioceno (aproximadamente 20 milhões de anos). Tratavam-se de animais pequenos, bem adaptados à vida em vegetação densa, muito parecidos com os duikers (pequenos antílopes Africanos existentes), possuíam locomoção de fuga já em saltos, caninos hiper desenvolvidos (particularmente nos machos) e ausência de chifres. Os caninos eram utilizados como armas para defesa e em brigas por territórios. Chocado com essa informação? Um veado sem chifres com dieta herbívora, mas com caninos hiper desenvolvidos? Não deixe que o veado-d’água-chinês (Hydropotes inermis) escute essa sua recusa em aceitá-lo dentro do álbum de fotos da família Cervidae. Este representante vivo asiático manteve as características dos veados mais antigos acima descritas.
Relação intermediária entre chifres e dentes
Um segundo passo evolutivo trouxe o aparecimento dos primeiros veados com chifres e dotados de caninos: os Muntiacus sp. São espécies também asiáticas de pequeno porte, chifres simples (com uma pequena ramificação) e caninos bem menos desenvolvidos que o grupo anterior. Além disso, os pedículos de onde os chifres se originam (vejam aqui postagem sobre esse assunto) não ficam bem no alto do cabeça, mais sim um pouco mais abaixo no crânio, na altura dos olhos, visível como uma protuberância saliente embaixo da pele do animal.
Nova radiação evolutiva e surgimentos dos chifres avantajados
É então que nosso tour pela evolução de Cervidae caminha para a radiação dos veados mais corpulentos (vamos chamar o pai do Bambi aqui novamente no nosso imaginário) com chifres cada vez mais vistosos e ramificados e ausência de caninos hiper desenvolvidos. Uma grande diversidade de espécies vivendo nas condições das altas latitudes temperadas da Eurásia começa a se aventurar rumo a outros continentes, dando início a era dos veados do Novo Mundo, já no Plioceno.
Esse processo de expansão para novos continentes, obviamente, impôs diversas forças seletivas permitindo que as espécies se tornassem muito adaptadas a ambientes distintos. Por essa razão, existe uma marcada variação entre as espécies e até entre populações da mesma espécie, mas que habitam ambientes distintos.
Vamos resgatar aqui nossa afirmação inicial sobre o padrão de chifre elaborado e ramificado?
“Não só nem sempre foi; como não será!”
Que nem sempre foi, acho que já ficou claro acima, com os representantes mais primitivos não apresentando chifres ou chifres bem simples e pequenos.
Mas e o …” não será”?
É uma espécie de futuro-do-pretérito. É tipo algo que ainda vai ser, mas já foi! ‘Zoei’ de vez, né?
Cervídeos florestais e implicações para o chifres
Até final do Mioceno não havia cervídeos nas Américas. Os primeiros representantes chegaram na América do Norte no início do Plioceno e a América do Sul só se tornou um destino possível com a formação do Istmo do Panamá já no final desta era. Agora, pare e pense no pai do Bambi chegando no meio da floresta tropical, – cheia de cipós e super fechada -, com aquela galhada toda, se achando o último biscoito do pacote. Sei não! Nunca tive chifres (emoji pensativo aqui, minha gente), mas já andei demais pela floresta e, olha, vontade mesmo era de ser cobra sem nenhum apêndice enroscando por aí. Muito menos pares de chifres grandiosos.
Já deu pra sacar que esse padrão clássico de chifres deixou de ser vantajoso, né? A saída foi a evolução agindo novamente, condição muito bem observada em um grupo muito particular de veados neotropicais: os veados do gênero Mazama. Este grupo específico de animais, juntamente com o gênero Pudu reúne animais de pequeno porte (em sua maioria), dotados de chifres simples, sendo predominantemente noturnos e bastante tímidos. Essa simplificação do chifre provavelmente se trata de uma adaptação secundária ao ambiente de vegetação densa em que essas espécies vivem.
Agora conta pra gente se você não ficou impressionado com a relação entre chifres e dentes? O vai e vem dos chifres versus caninos versus tamanho dos bichos versus tudo isso indo e voltando a ser outra vez? Louco né? Um grande viva a evolução: força motriz da natureza. Produzindo belezas ou bizarrices (a depender do gosto de quem vê). Eu se fosse você só sentiria orgulho por chegar até o final desse conteúdo. Fala sério? São alguns milhões de anos de história de chifres que você absorveu! Eu sei! É coisa demais pra cabeça, não é mesmo?
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Referências
de Azevedo, N, A. et al. Guia ilustrado dos cervídeos brasileiros. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Mastozoologia, 41p. 2021. (Disponível em: https://sbmz.org/wp-content/uploads/2022/01/Guia_ID_cerv_1a_ed.pdf)
Heckeberg, N. S. The systematics of the Cervidae: a total evidence approach. Biodiversity and Conservation. PeerJ8, e8115. 2020.
Putman, R. The Natural History of Deer. Comstock Publishing Associates. A division of Cornel University Press. Ithaca, New York. p.191. 1988
Marina Xavier da Silva
Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.
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