No começo eu fiquei resistente
quando cheguei naquela rua
Não me agradava a ideia de múltiplos cuidadores e nenhum dono ou, em essência: um responsável
Não me agradava também, não ter a escolha de não ser acompanhada em todas as minhas caminhadas pelas ruas do bairro
Custei a compreender a insistência da cia a custas de nada
nenhuma simpatia
afago
agrado de minha parte
Não me atraía em nada essa amizade submissa
Aos poucos ele foi conquistando o espaço da minha atenção
os risos da minha filha
os quintais e tapetes da minha casa
Na maestria exata de um verdadeiro cão sem dono
O vimos também se enaltecer de todas essas conquistas
A cada casa ou prato de comida conquistado ao longo da rua
maior sua valentia
seu exibicionismo e
como era de se esperar
sua ação protetiva
E assim, passou a latir
esbravejar
correr
perseguir todas as coisas que pareciam não triviais à rua
A SUA rua!
Virou o verdadeiro e maior segurança que se podia imaginar. Quantas vezes não nos avisou insistentemente dos perigos e de quantas coisas nos livramos devido a isso?
Foi pai sem ser responsável pela prole
amante
galanteador
tudo como manda o figurino de um vira lata típico
Pagou por tudo isso, eu creio
Foi esfolado
mordido e…
Castrado também
Superou poucas e boas
e recebeu muito amor e afagos de mãos diversas
Era realmente um cão que sabia ser cativante e cativar
Não à toa, tinha múltiplos nomes
e atendia a todos eles
Ensinou-me que a vida sem casa nem dono era, de fato, uma decisão
uma escolha
Tinha genética genuína de um cão da rua
Parecia não lhe caber as conveniências de um lar e as manias de um único dono
Infelizmente, não por sua natureza livre
mas pela liberdade de um mosquito
adoeceu
Não sei bem se foi má sorte
se destino
ou missão
A quem pertence a decisão de eutanásia de um cão livre?
Não houve resistência
Já não conseguia pertencer à rua
Pertencia à sua doença
dolorosa
sem cura
contagiante
Hoje foi um dia difícil para todos
na contramão da sua valentia de cão sem raça pusemos fim a sua desgraça