Where there are sheep, the wolves are never very far away (Titus Plautus, 254 – 184 BC)
A relação homem e onça pode ser muito conflituosa. Neste artigo apresento alguns conceitos de ecologia de comunidades propondo uma nova abordagem para interpretação da coexistência homem e onça. Este ensaio foi produzido como trabalho final da disciplina de Ecologia de Comunidades do programa de Pós-graduação em Ecologia do Instituto de Biociências da USP.
Definindo os conceitos predação e competição
As interações entre espécies e das espécies com o meio ambiente determinam fortemente a dinâmica das populações na natureza. Competição e predação configuram como as principais interações estruturantes de comunidades ecológicas (Chase et al. 2002).
A competição talvez seja a interação mais influente em ecologia, muitas vezes referenciada como responsável pela distribuição das espécies na natureza (Connell, 1961).
Em sua essência a competição gera redução na fecundidade, crescimento ou sobrevivência entre os indivíduos competidores (Begon et al. 2007). A predação, por sua vez, interfere na diversidade local ao prevenir a monopolização dos principais requisitos ecológicos por uma única espécie (Paine, 1966) e, portanto, atua de forma a diminuir a intensidade das interações competitivas (Gurevitch et al. 2000).
Ao contrario da competição interespecífica onde há efeitos negativos recíprocos entre as espécies envolvidas, na predação, apenas o predador é beneficiado diretamente (Chase et al. 2002).
As conseqüências da interação biológica entre predadores e presas podem ser tanto diretas como resultado da interação física e do ato de consumir ou danificar a espécie presa, bem como, indiretas, provocando mudanças adaptativas no comportamento ou na alocação energética na história de vida das espécies de presa (Wootton, 1994; Schimitz et al. 1996).
O efeito direto da predação é mais intuitivo e uma das consequências óbvias resulta na redução do tamanho populacional das presas. O efeito indireto, por sua vez, resulta em diversos mecanismos plásticos de trade-offs que levam a alterações comportamentais, morfológicas, fisiológicas e ontogeneticas (Harvel, 1990; Relyea, 2001), com efeitos aditivos na comunidade e independentes da remoção do indivíduo consumido (Werner & Peacor, 2003). Distinguir entre estes dois tipos de efeito é de fundamental importância para predição de resposta dos organismos no ambiente (Wootton, 1994).
Competição e predação – uma abordagem para explicar a relação homem e onça
Neste ensaio, apresento um contexto pouco trivial, admito, na aplicação dos conceitos de ecologia de comunidades, motivada por constantes questionamentos a respeito da sobrevivência da população de grandes predadores de topo em uma paisagem dominada por um forte competidor: o homem.
Baseada em vivências experimentadas ao longo de 9 anos de trabalho no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, inúmeras indagações a respeito dos processos que permitem coexistência entre onças e homem, surgiram. Leia este post para um exemplo dessa vivência.
Quais são as condições gerais que permitem coexistência entre estes competidores e que circunstâncias levam à exclusão competitiva? Que ações de conservação minimizam a eliminação do competidor onça? Qual o efeito da predação
de animais domésticos pela onça?
A relação competitiva entre homem e onça se dá de maneira eventual quando o homem caça presas silvestres que servem de base alimentar para a onça e esta, por sua vez, quando abate animais domésticos que servem de alimento e renda para os seres humanos.
Tecnicamente este tipo de relação é definido, conforme Begon et al. (2007) por competição por exploração, onde os indivíduos interagem entre si indiretamente, respondendo a um nível de recurso que foi reduzido pela atividade dos competidores. No caso específico deste ensaio; o consumo de presas comuns.
Ao se alimentar de “comida do homem”, onças tornam-se vulneráveis a ações de retaliação e influenciam diretamente, em maior ou menor grau, na fonte de renda e no modus operandi de uma dada propriedade, com consequências diretas na qualidade de vida de todos os moradores da região.
Assim, garantir a convivência entre estes dois competidores tem sido um grande desafio em todo o mundo. A maioria das pessoas não tolera a simples presença da onça nas imediações, mesmo sem terem sofrido nenhum dano com a presença da espécie.
Ironicamente, é a similaridade entre nós e as onças que tornam a intolerância um sentimento tão proeminente. Ambas as espécies são predadores formidáveis.
Embora pouco considerado nos estudos de conservação, tanto o efeito direto (mediado por densidade) quanto o efeito indireto (mediado por plasticidade fenotípica) tem múltiplas conseqüências para o ecossistema em se tratando de predadores de topo (Ordiz et al. 2013).
Provavelmente a razão mais antiga por trás da perseguição aos carnívoros seja devido ao medo que os predadores exercem em nós, como o fazem para as suas presas (Gross, 2008).
A ecologia da predação é bastante complexa. Onças controlam numericamente e influenciam o investimento de mecanismos antipredação das presas silvestres, mas também exercem efeito indireto sobre seu competidor; o homem. O efeito do risco e do medo que este animal exerce nas pessoas, com ou sem experiência passada de conflito direto com o predador, reflete-se por toda a vizinhança aumentando a
predisposição para perseguição.
Como consequência, homens matam mais onças reduzindo o papel destes predadores em seu ambiente natural, bem como, a competição entre eles. Além disso, o balanço entre disponibilidade de presas silvestres e domésticas, agravadas ou não por interferência humana, pode pressionar a preferência dos predadores por animais domésticos, repercutindo posteriormente em toda cadeia trófica. Assim, quanto maior o consumo de presas domésticas, mais consequências negativas ocorrerão às onças, repercutindo nas relações tróficas abaixo dela (Figura 01).
Ações de conservação devem considerar os efeitos destas interações e interferir quando possível para permitir coexistência entre seres humanos e animais silvestres. A relação homem e onça tem componentes ecológicos, mas é fortemente influenciada por questões de cunho social, econômico, cultural e político o que dificulta ainda mais as ações de conservação.
Relação homem e onça: quando é possível a coexistência?
Uma possível interpretação de coexistência se revela pela relação entre tolerância e prejuízo econômico, como ilustrado na Figura 2. Neste exemplo, coexistência é mediada pela intensidade do prejuízo econômico e do nível de tolerância do homem.
As figuras 2A e 2B, representam o cenário usual e o ideal, respectivamente. Se adicionarmos o efeito indireto do predador (raramente considerado nos programas de conservação), ou seja, diminuirmos a tolerância; reduzimos as chances de coexistência (Figura 2C).
O efeito indireto tem implicações fortes de manejo, pois reduz as chances de coexistência mesmo se o prejuízo econômico for baixo ou constante no tempo (Figura 2D). Uma das implicações diretas dessa relação serve como justificativa para a ineficiência dos programas de ressarcimento por prejuízos causados por onça.
Ações para tornar a relação homem e onça menos conflituosa
De acordo com o acima exposto, embora haja incorporação de elementos socioeconômicos na abordagem ecológica, fica cada vez mais evidente a importância dos estudos de interação para compreensão da estruturação de comunidades. As interações entre homem e onças determinam a dinâmica entre estas duas espécies diferentemente ao longo de escalas espaciais e, por consequência, definem distintas ações de manejo em cada uma delas.
O esquema, representado pela Figura 3, plagia Vellend (2010) e como tal, organiza as informações aqui desenvolvidas. No esquema (Figura 3) observamos que homens e onças possuem habitats distintos na natureza e, portanto, há pouca interação,
permitindo coexistência. Neste cenário global, poucas ações de manejo são necessárias e se resumem a ações que melhorem a integridade dos espaços naturais e do homem.
No outro extremo, na escala local, ou seja, no nível da propriedade rural lesada, predomina a interação competitiva e as ações de manejo devem ser imediatas e se traduzem basicamente na identificação do problema e na orientação de práticas de manejo que afugentem o predador.
A maior intervenção, todavia, ocorre no nível regional, quando a situação foge do controle da(s) propriedade(s) que sofreu o ataque e o efeito indireto do predador se adiciona ao efeito competitivo. Neste cenário diversas ações de manejo são necessárias e representam grande investimento técnico e de tempo por parte dos conservacionistas.
Conflitos podem ocorrer em qualquer lugar ao longo de um continuo espacial. A minimização do problema deve ser direcionada de acordo com a contextualização geral do problema que deve abordar tanto a relação ecológica evidente quanto a econômica e social. De toda forma, o balanço ideal parece permear entre promoção de mudanças de atitudes (aumento da tolerância), comprometimento e melhorias de renda que tornem a perda econômica menos impactante para os proprietários rurais.
Se você gosta deste tema e gostaria de ler mais, acesse essa reportagem para ter acesso a uma abordagem complementar da relação homem e onça.
REFERÊNCIAS
Begon, M.; Townsend, C.R. & Harper, J.L. 2007. Ecologia: de indivíduos a ecossistemas. Ed. Artmed. 740 pp
Chase, J.M.; Abrams, P.A.; Grover J.P.; Diehl, S.; Chesson, P.; Richards,S.A.; Nisbet R.M. & Case, T.J. 2002. The interaction between predation and competition: a review and synthesis. Ecology Letters (5): 302-315.
Connell J.H. 1961. The influence of interspecific competition and other factors on the distribution of the barnacle Chthamalus stellatus. Ecology 42(4): 710- 723.
Gross, L. 2008. No place for predators? PLOS Biology 6 (2):40.
Gurevitch, J.J., Morrison, A. & Hedges, L.V. 2000. The interaction between competition and predation: a meta-analysis of field experiments. American Naturalist 155: 435–453.
Harvell, C. D. 1990. The ecology and evolution of inducible defenses. Quarterly Review of Biology 65:323–340.
Ordiz, A.; Bischof,R. & Swenson, J.E. 2013. Saving large carnivores, but losing the apex predator? Biological Conservation 168: 128-133.
Paine, R. T. 1966. Food web complexity and species diversity. American Naturalist 100: 65-75.
Relyea, R.A. 2001. The relationship between predation risk and antipredator responses in larval anurans. Ecology 82(2): 541-554.
Schmitz, O.J.; Beckerman, A.P. & O’Brien, M. 1997. Behaviorally Mediated thophic cascades: effects of predation risk on food web interactions. Ecology 78(5): 1388-1399.
Vellend, M. 2010. Conceptual synthesis in community ecology. The Quaterly Review of Biology 85: 183-206.
Werner, E.E. & Peacor, S.D. A review of trait-mediated indirect interactions in ecological communities. Ecology 84(5): 1083-1100.
Wootton, J.T. 1994. The nature and consequences of indirect effects in ecological communities. Annual Review of Ecology System 25:443-466
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Marina Xavier da Silva
Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.