Urutau – uma ave aterrorizante ou impressionante?
Em várias ocasiões distintas eu já apresentei as curiosidades do urutau ao público comum: vizinhos, parentes, crianças, professores. Em todas elas, sempre recebo palavras nada afetuosas ao pobre bichinho: horrendo, assustador, feio, amedrontador, mau agouro e por aí vai. Ironicamente é pelo sentimento oposto que gosto de falar dessa ave. E aqui não seria diferente! Eu sou muito fã desses comportamentos de camuflagem. É uma das coisas que mais me fascina na biologia. E convenhamos que essa ave tem pós-doutorado nesse quesito. Desde o padrão de cores da plumagem, passando pelo comportamento estático, à saliência “do olho que vê” mesmo estando fechado, e para além da camuflagem, – os adicionais: canto, cor dos olhos, comportamento de caça, entre outros. Com tantos atributos e “acessórios” eu achei que seria fácil “vender” (leia-se apreciar) o bichinho.
Urutau: a ave que ninguém vê
Minha admiração pela ave já existia até mesmo antes da graduação, mas foi novamente no Parque Nacional do Iguaçu, então já formada e exercendo a profissão que eu, de fato, encontrei e fotografei a ave. Um urutau comum Nyctibius griseus com seu filhotinho, ainda com plumagem de filhote, porém com todos os comportamentos típicos da espécie: postura estática e com a cabeça ereta simulando o prolongamento de um galho. Eles ficaram dias ali, permitindo serem observados e apostando na excelente camuflagem deles.
Fiquei radiante com o encontro e registro. Embora sua ocorrência no Parque fosse certa, eu nunca mais encontrei a espécie mesmo tendo passado longos 13 anos trabalhando e morando nessa Unidade de Conservação. Ouvia seu canto, mas nunca mais registrei a espécie. Não tenho dúvidas que a camuflagem do bichinho é efetiva! Recentemente, até mesmo como estímulo para criação deste canal de comunicação, recebi a grata visita de um indivíduo adulto, na árvore em frente à minha casa na rua que moro – agora na cidade. Ele ficou vários dias pousados no mesmo galho, infelizmente um pouco longe para permitir bons registros. Sempre lá! Sempre ele! Sempre estático! Podem até não gostar do bichinho, mas que ele é muito paciente, isso é inegável!
Urutau: taxonomia e atributos singulares
O urutau-comum (Nyctibius griseus) pertence à família Nyctibiidae que abrange somente aves noturnas com distribuição Neotropical. Sete espécies compõe a família distribuídas em dois gêneros, Phyllaemulor e Nyctibius, de acordo com um estudo recente com base em dados morfológico das espécies. A referência para essa classificação (ainda não acatada na maioria dos sites de busca populares de aves) encontra-se no final desse artigo.
Mas eu vou deixar a discussão taxonômica do bichinho para os especialistas. Afinal, sigo na minha missão de tentar convencer a todos que bichinho é bacana pra valer. E, nesse sentido, vou apostar aqui na descrição mais detalhada do kit que acompanha o animal. É! Como numa brincadeira em que você está lendo a descrição da caixa do brinquedo. Seria algo mais ou menos assim:
- Roupa para se esconder no ambiente;
- Canto intimidante ou assustador
- Olhos e bocas grandes – eficiente caçador de insetos e com visão noturna aguçada
- Olho mágico
- Fica parado (não está quebrado) quando colocado no seu ambiente ideal
E aí? Você comprava o brinquedo ou deixava na loja? Eu comprava a coleção toda! Para quem se interessar vale a busca das vocalizações de cada uma das espécies existentes de urutau. A campeã, sem dúvida é do urutau-comum, das fotos acima. E na roupinha (leia-se plumagem) eu ficaria com a espécie amazônica Phyllaemulor bracteatus, o urutau-ferrugem, que possui a plumagem mais diferente entre as espécies.
Urutau: a ave que tudo vê
Agora, bacana mesmo é que além da plumagem camuflada como se tivesse líquens ou se parecesse muito com um tronco ou folhagens, a ave conta ainda com duas saliências na pálpebra superior; uma particularidade morfológica que permite visão mesmo quando a pálpebra está fechada. E se isso não é bacana suficiente; pesquisadores observaram que essas duas pálpebras abrem e fecham de forma independente.
Quando fechadas elas giram sincronicamente sobre o olho, de modo que podem ser posicionadas como desejado pela ave sem mover a cabeça!! As duas saliências adicionadas a angulação da cabeça; se horizontal ou vertical, permitem que a ave observe possíveis ameaças vindas de qualquer direção. Isso potencializa o seu poder de camuflagem e sua postura estática durante o dia.
À noite, é hora de dizer adeus a camuflagem e ligar o grande farolete: os olhos grandes permitem que o animal enxergue bem sua principal refeição em baixa luminosidade; os insetos que caça com a grande boca aberta como se fosse um puçá. A caça aos insetos se dá tanto em voo quanto parados no ninho, por exemplo, atacando os insetos que passam por perto. Por fim, a vocalização melancólica e/ou assustadora confere a espécie um toque misterioso. Não obstante, não faltam lendas para ela.
E aí? Comenta conosco se você é do time que compraria fácil esse brinquedo ou se passava longe por ele na loja?
Para ouvir o canto do urutau-comum Nyctibius griseus clique aqui
REFERÊNCIAS
Barreiros, M. et al. Breeding acology of Rufus Potoo Nyctibius bracteatus in Central Amazoniam Brazil. Bull. B. O. C. 142(1).2022
Borrero H, J.I. Notes on the structure of the upper eyelid of potoos (Nyctibius) – The Conder 76, 210-240, 1974
Cestari, C. et al. Nesting Behavior and Parental Care of the Common Potoo (Nyctibius griseus) in Southeastern Brazil. The Wilson Journal of Omithology 123 (1) 102-106 2011
Costa, T.V.V et al. Phylogenetic analysis of the nocturnal avian family Nyctibiidae (Caprimulgiformes) inferred from osteological characters. Zoologischer Anzeiger 291, 113-122. 2021.
Marina Xavier da Silva
Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.