MONITORAMENTO DE JACARÉ COM CHUVA TORRENCIAL

Lá no inicio da minha trajetória profissional como bióloga no Parque Nacional do Iguaçu, participei de uma expedição de monitoramento binacional de jacarés (Caiman latirostris). A expedição consistia em percorrer o trecho do Rio Iguaçu margeando as bordas brasileiras e argentinas no trecho onde o rio incorpora os dois Parques Nacionais: Iguaçu e Iguazú. O trabalho, realizado anualmente, tinha como objetivo, o monitoramento populacional dessa espécie, no longo prazo.

monitoramento binacional do jacaré. Equipe brasileira e argentina juntos em um dos pontos de apoio.
Equipe binacional do Monitoramento

Pesquisadores brasileiros percorriam a margem brasileira contando a quantidade de jacarés avistados, enquanto pesquisadores argentinos contabilizavam a margem oposta. Iniciávamos o monitoramento no fim do dia e percorríamos o rio madrugada afora. Em certos trechos, pré combinados, nos reuníamos, trocávamos narrativas da contabilidade e contratempos ocorridos e, por vezes, mesclávamos a equipe para garantir o “controle de qualidade” e evitar “patriotismo favorável” acirrada pela rivalidade Brasil x Argentina. Vale tudo nessa vida! Até ganhar em números de jacarés avistados em cada um dos lados do rio Iguaçu.

Brincadeira! Isso não ocorria! Estávamos acostumados a sermos derrotados em quase tudo referente a fauna em se tratando de monitoramento conjunto. Trocávamos os participantes porque gostávamos de acompanhar e vivenciar a cultura dos nossos amigos vizinhos. Guardo com muito respeito e carinho grandes amizades dos tempos de trabalho compartilhado. Foram inúmeros esforços coletivos tanto em trabalhos de conservação, quanto de fiscalização e combate a crimes ambientais.

Eu com segurando um jacaré filhote para medição durante o montoramento do jacaré
Jacaré filhote, capturado apenas para medições e solto na sequência. Eu, visivelmente emocionada.

O trajeto, de aproximadamente 90km, era realizado em barcos infláveis (“duck”) e apesar de ser feito a favor da correnteza, sempre havia os trechos de corredeiras em que precisávamos navegar com mais atenção. O Rio Iguaçu tem fluxo bastante instável por conta da existência de inúmeras hidrelétricas nos seus trechos a montante das Cataratas. Em 24hs ocorrem mudanças consideráveis no nível do rio, com efeitos maiores ou menores na navegabilidade, a depender da época do ano.

Os tais “ducks” são barcos de plástico com furos. Ou seja, a água circula livremente dentro do barco que tem sua flutuação garantida pela presença de ar em sua estrutura resistente de PVC (creio que seja essa o material principal). Ou seja, a gente não afunda, mas fica sempre molhado durante o trajeto. Todos os itens pessoais e alimentos ficam guardados em bolsas estanques.

O trabalho é realizado sem interrupção até os pontos de apoio. Cada país larga a sua equipe no ponto mais próximo do limite leste dos Parques no caso Capanema, no Paraná e Andresito, na Argentina. Iniciamos nossa jornada ainda com luz e seguimos contabilizando durante a madrugada, favorecidos pelo reflexo vermelho dos olhos dos jacarés ao apontar a lanterna.

Em certo trecho do monitoramento, nos encontramos todos em um ponto de apoio específico na Argentina, nos alimentamos, dormimos e seguimos a diante. É possível cochilar e descansar entre os membros da equipe. Enquanto um monitora o outro deixa o barco a deriva e dorme. O silêncio e as estrelas são absurdamente reconfortantes, e toda corredeira mais forte é perceptível à distância segura em virtude do barulho diferenciado de um rio “mais nervoso”.

um pouco de descanso do monitoramento do jacaré. Molhada e de noite no barco encostado a margem
Um dos momentos de descanso no duck amarrado em um tronco às margens do Rio

Quando deixávamos o barco a deriva, ou seja, sem remar, para poder descansar, naturalmente ficávamos para trás dos outros membros da equipe. Mas era fácil restabelecer a diferença com remadas ativas e a favor da corredeira. Uma pausa aqui para tentar descrever o que é ficar deitada sozinha em um barco no meio do Rio Iguaçu, em um trecho abraçado por dois Parques Nacionais, sendo embalada em suaves marolas de um rio sereno, ao longe o ruído bravo da próxima corredeira indicando quanto de descanso era possível, acima um céu a perder de vista. Um sensação de plenitude naquela vastidão de uma noite que se tornava, até mesmo, colorida de tanto treinar os olhos para enxergar na penumbra.

Hoje reconheço que tive vários momentos de encontro com o que podemos chamar de paz, – um sentimento que muitos atribuem só ser possível no fim da vida-, durante o tempo que trabalhei no Parque Nacional do Iguaçu e sempre tratei esses momentos como profundamente valiosos, pelos quais sempre tive grande gratidão.

Mas, a paz, a serenidade do momento e o céu estrelado estavam com visto de validade por vencer e formos surpreendidos com uma mudança de tempo súbita, no final da tarde do segundo dia do monitoramento. Optamos por remar de volta ao ponto final do nosso resgate, já que não estávamos tão distantes assim dele e não haveria tempo hábil para achar um local possível para armar barracas.

equipe readequando a bagagem do barco momentos antes de encarar a chuva no monitoramento do jacaré
Parada estratégica à margem para readequar as bagagens e proteger tudo da chuva que avançava

Começamos a remar fortemente e a chuva torrencial foi impiedosa conosco. Não tínhamos visão de nada e só conseguíamos enxergar o colega no barco a frente quando os raios iluminavam o céu e nos davam alguma indicação de localização. Remávamos preocupados com os raios, mas sobretudo com o trecho final do nosso trajeto no rio. Antes de chegar no nosso destino: o Poço Preto, onde seríamos resgatados por companheiros em terra firme, tínhamos que passar por mais uma última corredeira de maior perigo. Mas como reconhecer onde ela estaria, sem nenhuma visão e audição, já que a chuva dominava o cenário perceptível???

Só a título de curiosidade, a próxima corredeira a ser vencida depois da nossa de referência e final, seria nada mais nada menos, que as próprias quedas das Cataratas do Iguaçu! Bacana né? Que chuva inapropriada, não é mesmo? Remávamos com braços de pavor e, talvez por dissipar a atenção entre tantas ausências, acabamos passando pela corredeira quase sem percebê-la; exceto pela velocidade maior atingida.

Por sorte, existe uma sinalização no Poço Preto (uma torre iluminada) que conseguimos visualizar e controlar os barcos para que não perdêssemos a entrada. Uma coisa é remar vários quilômetros a favor da correnteza; outra, bem diferente, é remar qualquer trecho que seja, contra ela!! Se perdêssemos o ponto de entrada, teríamos fortes motivos para remar contra e não cair nas Cataratas (a uma distância bem segura ainda, que fique claro!). Não sei se existe chuva forte o suficiente para sobrepor o barulho das Cataratas.

Bem, mas se lástima pouca é bobagem, fomos montar a barraca para passar a noite num quiosque elevado que existe neste Poço Preto. Nós não tínhamos comunicação com equipe de resgate e, mesmo que tivéssemos, eles precisariam percorrer 9km de terra para nos resgatar, debaixo de chuva com muitas árvores caídas no meio do caminho também (como de fato soubemos depois, no dia seguinte quando vieram nos resgatar).

Em terra firma, são e salvos; longe de qualquer tipo desfecho trágico final, troquei as roupas molhadas pela última roupa seca que eu tinha e fui ajudar a montar a barraca. Ocorre que calculei mal o final do quiosque e as mazelas do dia, e caí na lama e na chuva novamente, sujando a última peça de roupa que eu tinha. Resultado; precisei entrar pelada na barraca e me resguardar no meu saco de dormir antes que meus outros dois companheiros homens entrassem na barraca também.

Eu espero que depois dessa descrição de perrengues, não haja espaço para pensamentos maldosos. Quem divide perrengues de campo como este, sabe o valor inestimável de um colega de equipe. Tenham certeza, sempre foram muito respeitosos comigo. Perrengue bom de ser compartilhado só acontece para quem tem amigos de verdade!

Fim da chuva, fim da noite esquisita, vestida novamente de lama molhada, acordamos com a maravilhosa cena de bugios no alto das árvores. Foi a única vez que os vi no Parque Nacional do Iguaçu.

Natureza em toda sua essência. Que baita vivência!!!

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Marina Xavier da Silva

Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.

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