ACAMPAMENTO. COMO SOBREVIVER A 25 DIAS DE CAMPO?

Os bastidores de uma longa campanha de captura de grandes felinos com direito a ovos de chocolate e salada

Foram 25 dias de acampamento, mas era para ter sido 30 dias. Esse era o planejamento pretendido para uma campanha de captura de onças-pintadas no meio do Parque Nacional do Iguaçu. Mas foram 25 dias muito muito bacanas!

barracas embaixo da lona do nosso acampamento
Nosso lar por 25 dias.

Quando a gente fala em campanha de captura e, adicionalmente, colocamos fotos de animais silvestres anestesiados é comum que deturpem a ideia e interpretação para algo oposto ao que de fato é.

Que fique claro que campanhas de captura aqui neste canal referem-se aos esforços de pesquisa científica onde biólogos e veterinários (usualmente) vão a campo para coletar informações sobre as espécies silvestres que estudam. No caso específico dessa postagem: as onças (pumas e pintadas) eram o foco dos esforços de captura.

Para conseguir capturar esses animais super inteligentes e esquivos, um acampamento de luxo foi criado. Escolhemos o local previamente, levamos uma lona bem grande para colocar as barracas e nos servir como telhado. Fizemos até um banheiro improvisado. Ele ficava um pouco distante do acampamento: uma cova profunda, um acento de madeira improvisado, uma lona pequena para garantir a privacidade e serragem que recebíamos de tempos em tempos para garantir a “descarga”.

banheiro improvisado do acampamento com lona e sacos de serragem
O banheiro e os sacos de serragem ao lado

Um gerador foi levado ao local e mantínhamos luzes no acampamento e o carregamento das baterias necessárias para os equipamentos envolvidos na captura das onças. Também montamos estantes improvisadas para suspender os alimentos do solo, uma térmica com blocos de gelo grande para manter as coisas semi-refrigeradas e levamos um botijão de gás para não precisarmos fazer fogueira para cada refeição preparada.

estantes cheias de suprimento e geradores do acampamento
Estante com suprimentos e geradores ao lado
cozinha do acampamento
A cozinha

Ah! E o mais importante de tudo! Um sistema de comunicação improvisado com antenas que garantia não só algum tipo de socorro, como também os pedidos de recarga de alimentos e demais necessidades.

rádio comunicação do acampamento
Rádio comunicação – nosso contato com o mundo

Para quem não é da área pode pensar: – Jura que essa é definição de luxo? Bem, a verdade é que saídas mais curtas de campo, como usualmente fazemos para coletarmos algumas informações em campo, duram não mais que cinco dias. Tempo suficiente para conseguir carregar uma certa quantidade de alimentos não perecíveis, uma barraca e apetrechos de coleta de dados.

Nesses casos de permanência mais curta em campo leva-se apenas o suficiente para sobrevivência com mínimo conforto. Nada de lonas, fogareiros e por aí vai. Então…Sim! Estávamos com muito conforto para garantir que aguentaríamos o máximo de tempo possível

O acampamento ficava na beira do Rio Iguaçu e nossa linha de armadilhas ficava rio acima. Toda manhã, pegamos o barco e íamos revisar as armadilhas. E, apesar de parecer muito simples e prático era justamente a parte de subir rio acima a grande dificuldade. Isso porque o Rio Iguaçu sofre interferência das barragens que existe a montante do parque. São seis hidroelétricas que influenciam fortemente na vazão do rio. Em 24 hr temos mudanças consideráveis de vazão que favorecem ou não a navegabilidade com barcos a motor.

subida do rio Iguaçu em direção a checagem das armadilhas. Um barco com pesquisadores passando por uma corredeira
Rotina diária de checagem das armadilhas. Subir o rio Iguaçu e vencer as corredeiras

Dormíamos preocupados se teríamos ou não condições de checar as armadilhas no dia seguinte caso a vazão estivesse muito baixa e também se seria possível chegar suprimentos na data combinada. De tempos em tempos um barco saía da sede, em Foz do Iguaçu, e rumava para o acampamento com mais suprimentos e, por vezes, substituição da equipe.

Dia dia do acampamento

Os dias eram tranquilos no acampamento. Acordávamos bem cedo, tomávamos café e saíamos para revisão das armadilhas, serviço esse que precisava ser feito independente das condições climáticas. Ao retornar, nos dividíamos entre lavar louças no rio e iniciar os preparativos do almoço e organizar baterias e demais equipamentos das armadilhas.

Pesquisadora dentro do parque indo realizar o monintoramento das armadilhas rio acima
Nada me deixava mais feliz que estar a serviço da natureza

A tarde, se houvesse vazão, realizávamos nova checagem de armadilhas. E assim passávamos os dias. Banhos de rio quando o tempo estava ameno e agradável e banhos no chuveiro de campanha (desses que a gente coloca agua numa espécie de baldo-chuveiro e sobe com a ajuda de uma roldana) quando estava muito frio.

banheiro do acampamento com chuveiro de campanha e lona privativa
Banheiro do acampamento

Raramente usávamos esse banheiro apesar de não ser verão, porque tínhamos preguiça de carregar tanta água para cima (onde o chuveiro ficava). O rio, quase sempre, era preferido para a realização dessa atividade diária.

A noite, enquanto o gerador funcionava, tempo suficiente para garantir o carregamento das baterias, jogávamos cartas e nos divertíamos. Fim do carregamento, era hora de poupar o combustível do gerador e nos recolhermos em nossas barracas, quase sempre perto de nove horas da noite.

jogatina noturna. Numa mesa estão sentados pesquisadores seguranda cartas de baralho
Momentos de descontração noturnos

Em acampamento no meio do mato quem tem salada é rei

Para sobrevivermos a 4 ou 5 dias no campo, usualmente levamos uma fonte proteica (carne ou frango) para ser feita no primeiro dia, a noite, como refeição quente e salame para todos os demais dias. Isso é o que acontece quando falamos de um campo curto.

No nosso caso, acampados e com previsão de aguentar longos dias a fio no meio do mato, tínhamos o apoio de um barco suprimentos a cada semana, mais ou menos. Este barco trazia proteínas para a semana e mais gelo. Levava de volta, o lixo que produzíamos e assim a gente ia levando os dias.

Logística do barco suporte. Carregado de equipamentos e suprimentos para o acampamento
Logística da equipe que dava suporte ao acampamento – carregando o barco com suprimentos e equipamentos

Por isso falo defendo e reforço o conforto apesar de estar no meio do nada. Tínhamos comida diversificada ao longo dos dias e, com certeza, isso é muito luxo num esquema de restrição. Não aguentaríamos tanto tempo comendo salame. Nem mesmo o salame aguentaria! rsrs.

E era exatamente nesse contexto que a salada chegava. Apesar das proteínas diversificadas, de poder ter feijão, arroz, macarrão e tudo mais, sentíamos, lógico, falta de salada. E no dia que o barco vinha, a gente tinha salada. Era uma alegria!!! Quem imaginaria estar no meio de uma floresta e poder comer folhas de alface?? Fala serio!!!

Páscoa e Dia das mães? Celebramos também!

A campanha de captura ocorreu em duas datas especiais: Páscoa e Dia das Mães. Para nossa surpresa, o barco suprimento trouxe ovos de Páscoa. Obviamente um agrado da equipe que, na sede, cuidava de todo suporte e suprimentos de quem estava acampado.

Posso garantir que esta equipe teve bem mais trabalho que a gente! Não é fácil garantir suprimentos no tempo correto entre saída do barco e idas ao mercado. A campanha certamente envolveu muitas pessoas e reconhecemos o esforços de todos. Pronto. Salada e ovos de Páscoa. Eu já nem sei mais o que dizer dessa estadia de luxo no meio do parque!

Os ovos de Páscoa era desses com brinquedos dentro. Uma bonequinha especificamente. Kaylan foi o nome que demos a ela e, sinceramente, não lembro o motivo do nome. Adivinha o que aconteceu?

Quem assistiu naufrago com o Tom Hanks sabe que ele se apegou a bola de vôlei Wilson, não é mesmo? Bom, sem muitas distrações por ali, resolvemos adotar a tal da bonequinha como nosso diversão. A diversão era esconder ela nos itens pessoais de cada um do acampamento. A Kaylan aparecia dentro da bota de um, na mochila do outro, dentro da panela e por aí vai. Eu sei: confissões de acampamento, né? Pronto! Agora você tem certeza que este conteúdo não foi gerado por IA. rsrs.

bonequinha que veio no ovo de Pascoa dentro do mate em uma cuia de chimarrão

Dia das mães também foi bem especial. Lembra que eu falei que tínhamos um rádio para comunicação? Foi assim, que publicamente mandei um Feliz dia das Mães, via rádio, enquanto o marido segurava o celular perto do rádio com a minha mãe para que ela ouvisse a mensagem. Pensa? Minha mãe que mora beeem longe do acampamento, de Foz do Iguaçu e do Paraná, rsrs. Ela estava recebendo uma mensagem de Dia das Mães diretamente dos confins da floresta!

É gente! Esse acampamento tinha tudo, exceto captura e vestígios de que estávamos perto de um sucesso de captura.

Pequenos perrengues e o fim da campanha de captura

Não podemos dizer que a campanha não teve percalços. Tivemos algumas emoções que destaco na sequência.

A primeira delas tem a ver com vazão do rio. Certa manhã o rio amanheceu tão baixo que era impossível passar a corredeira com o barco a motor. Resolvemos ir remando os barcos infláveis. Uma tarefa bem cansativa já que remávamos contra a corredeira. Foi tudo bem. Garantimos o monitoramento, mas ficamos reflexivos a respeito da logística da campanha. Se o rio continuasse baixo, não poderíamos garantir segurança aos animais capturados. Isso significa, atendimento o mais imediato possível a um animal que está contido. Ele não pode ficar muito tempo numa armadilha, sobre estresse.

dois momentos distintos do mesmo ponto. Um deles mostra o rio iguaçu com a vazão bem baixa , enquanto o outro mostra o rio na sua vazão normal
Duas visões do mesmo ponto do Rio Iguaçu. A esquerda com a vazão bem baixa. A direita, com a vazão normal

O segundo momento de tensão ocorreu quando um bichinho bem pequenino, muito menor e menos valente que qualquer onça contida numa armadilha, invadiu o acampamento. Sim! Formigas! Não uma, ou duas. Milhares delas. As formigas de correição. Elas formam um corredor de devastação por onde passam e suas picadas são bem incomodas. Mas, tirando o fato de respeitar a passagem delas pelo acampamento, foi tudo bem. Subimos em cadeiras ou troncos enquanto elas passavam por todo acampamento.

Também teve chuva torrencial. Bem forte mesmo o que no meio do mato sempre assusta. Você não tem para onde correr. Uma queda de árvore pode ser fatal. Passamos a madrugada empurrando a água da lona que se acumulava. O peso da água podia por acampamento abaixo. Essa também. Sobrevivemos. Fora a lama e a dificuldade de manter alguma ordem no local, não tivemos grandes contratempos.

Nenhum evento da natureza abalou os ânimos da equipe. Foi um evento de natureza humana que pôs fim a aventura. Caçadores roubaram e destruíram uma de nossas armadilhas. Já estávamos desanimados com as poucas chances de captura e nada dispostos a perder equipamentos para caçadores. Se existem caçadores ali, é natural que nossas chances de captura estejam comprometidas.

um paisagem do Parque Nacional do Iguaçu. Um por do sol com o rio
Nenhum perrengue de campo supera o que vivemos dentro da floresta

E assim, voltamos antes “para casa”. Vinte e cinco dias, sem celular, sem notícias do mundo, mas na companhia da natureza (e suas fúrias repentinas) e dos melhores companheiros de campo possível.

papagaios descansando nas taquaras
Papagaios descansando nas taquaras. Visão possível para quem navega pelo Rio Iguaçu

Voltamos. Sem capturar nada, mas felizes com o trabalho em equipe.

Marina Xavier da Silva

Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.

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