Pernas pra que te quero! O dia que quase perdemos o resgate de helicóptero para sair do interior da floresta do Parque Nacional do Iguaçu.
Entendendo o contexto do uso do Helicóptero
Um dos atrativos turísticos do Parque Nacional do Iguaçu (PNI) é o voo panorâmico que proporciona uma visão privilegiada das mundialmente famosas Cataratas do Iguaçu. Uma contrapartida da concessão turística é a disponibilização de algumas horas de voo para atender demandas da gestão e manejo desta Unidade de Conservação.
Entre as demandas dos gestores do PNI está o apoio às pesquisas científicas realizadas no interior do Parque. Nós, reles mortais pesquisadores, do projeto Carnívoros do Iguaçu, – projeto institucional voltado à pesquisa e conservação das onças-pintadas -, podíamos contar com o apoio do helicóptero para muitas das nossas atividades, como o monitoramento de armadilhas fotográficas dispostas em áreas mais remotas do Parque e monitoramento de animais marcados com rádio colar.
Um dos campos mais difíceis que a gente tinha era o realizado ao longo e nas proximidades da extinta Estrada do Colono. É uma trilha longa, com muitos desafios oriundos do processo de regeneração da floresta nessa área.
Ali, existem longos trechos de capim colonião e muitas árvores centenárias caídas no meio da estrada. Além disso, a vegetação predominante favorece, não só, muitos arranhões, como também a infestação intensa por carrapatos. Ou seja, é um campo que sempre deixa marcas tempos depois de sua execução. Além disso, o trajeto é extenso e cansativo e, de fato, era o campo que a gente mais protelava para fazer.
O helicóptero trazia uma vantagem enorme porque já nos deixava em uma clareira aberta para este fim no meio da ex estrada. Com divisão adequada de tarefas, conseguíamos cumprir o grid de armadilhas fotográficas, sem necessidade de dormir no interior da floresta. Com certa organização e planejamento podíamos ser deixados na floresta e contar com o resgate de helicóptero um certo tempo depois.
Planejando o resgate de helicóptero
Então funcionava assim. Olhávamos a previsão do tempo, verificávamos a disponibilidade da aeronave com a empresa, combinávamos um horário de partida, passávamos as coordenadas geográficas do ponto de partida e de resgate, bem como o horário estimado para o resgate de helicóptero.
É preciso entender que esse planejamento tem que ser executado porque uma vez lá dentro do parque, inexistem formas de comunicação para alterar o plano. Não rola um: – Alô? É da empresa de helicóptero? Olha, houve um contratempo aqui, podem voltar uma hora mais tarde do combinado?
É também preciso esclarecer que se as condições meteorológicas virarem, não haverá resgate de helicóptero e o piloto também não pode desligar o motor uma vez que desce na clareira. Nós embarcamos e desembarcamos da aeronave com ela em funcionamento.
Claro que isso não é uma regra rigorosa, mas pensa o problema de uma aeronave parada num espaço que só cabe ela e uma pane qualquer não permitir que o motor seja acionado? Não dá pra dar um empurrãozinho ladeira abaixo pra ver se pega. Então, se o piloto desce na clareira e não encontra a equipe, ele simplesmente levanta voo novamente e retorna para o hangar.
Para garantir que conseguiríamos executar as tarefas do dia e considerando a limitação de equipe que pode ir num helicóptero, separávamos as atividades a serem desenvolvidas no mato da forma mais eficiente possível, considerando as limitações físicas e expertises de cada pesquisador.
Era necessário que o resgate de helicóptero ocorresse razoavelmente cedo (até o meio da tarde, por exemplo), para garantir a execução de um plano B de retorno, para qualquer eventualidade com as tratativas dessa operação.
Se por motivos meteorológicos ou contratempos no campo a gente não tivesse na clareira de resgate na hora combinada, nós teríamos que sair a pé do meio da estrada até a cidade mais próxima. Por isso era necessário planejar o resgate cedo para que saíssemos com luz do dia, na cidade mais próxima, caso o resgate de helicóptero desse errado.
O monitoramento das armadilhas fotográficas
No tempo em que esse fato ocorreu, as armadilhas fotográficas que dispúnhamos para monitorar a fauna do parque eram modelos que usavam filme fotográfico e necessidade de um imã para ligar e desligar o equipamento. Sim! Eram equipamentos do tempo dos dinossauros.
Estávamos em três pessoas. Eu e Mauro compartilhávamos parte da jornada juntos e depois nos dividíamos para checar equipamentos distantes a mais de 4 km de distância um do outro. A Marcela ia sozinha para outro trecho, percorrendo a estrada no sentido oposto. O mesmo que teríamos que percorrer caso o resgate não funcionasse.
Pela divisão de tarefas, a Marcela deveria ser a primeira a chegar no ponto de resgate. Isso porque o ponto de armadilhas dela ficava um pouco mais próximo da clareira de resgate que os demais membros da equipe. Ocorre que, por motivos que só saberíamos depois, eu e o Mauro retornamos antes que ela.
O resgate de helicóptero que quase não aconteceu
Nenhum sinal da Marcela e já escutávamos o som do helicóptero se aproximando. Estávamos tensos. Sem saber o que poderia ter se passado com ela e já planejando como faríamos logisticamente com o descarte de apoio do helicóptero.
Foi no limite máximo de tempo possível da aeronave ligada na clareira que surge um sinal da Marcela (ou o que sobrou dela), semi correndo pela estrada. Calma! Marcela estava fisicamente íntegra e nenhum acidente maior havia lhe acontecido.
O que ocorreu é que a Marcela foi até a armadilha, trocou filmes e baterias, mas não tinha o imã com ela para deixar o equipamento funcionando. É preciso que a gente volte e reforce o quanto esse campo era desgastante e o quanto era esperado, por nós pesquisadores, que os equipamentos ficassem funcionando para que vocês entendam o esforço que a Marcela fez.
Ela resolveu voltar a clareira e ver se tinha algum imã no material de apoio que a gente deixa lá, para além do que levamos nas nossas mochilas pessoais. Era quase impossível que ela realizasse duas idas ao seu ponto de monitoramento em tempo hábil com o resgate de helicóptero. Marcela fez milagre!
Ela correu o que pode, tomou vários tombos, traída pelas pernas cansadas e por fim, não conseguiu deixar os equipamentos funcionando. Estava desfalecida pelo esforço físico, pelo calor excessivo e esgotamento da sua água.
Entramos no helicóptero e só assim soubemos todos os detalhes dos desafios enfrentados pela Marcela. Claro, levou tempo até ela recuperar o folego e esclarecer tudo pra gente. Pra além do esforço físico em vencer o tempo frente a uma vegetação agressiva e traiçoeira que existe neste ponto específico do Parque, tinha também uma certa derrota. Uma derrota moral por ser a única a não cumprir a missão.
Claro que isso é parte da auto cobrança dela, que fique claro. Eu teria a mesma sensação.
Nós precisamos voltar ao ponto de armadilhas fotográficas “da Marcela”, dias depois para deixar os equipamentos funcionando. Dessa vez, por terra. Na versão raíz. Nada de apoio do helicóptero. Sem correria. Degustando vagarosamente dos arranhões do capim colonião e da infestação de carrapatos.
Vejam vocês. Não pensem que somos frescos e pesquisadores nutela. Nós reconhecemos que o apoio do helicóptero é um diferencial raro. É tipo creme no café. Ele permite, como esclareci antes, que sejamos muito mais eficientes. Do contrário, teríamos que carregar mochilas pesadas com coisas para acampamento para pernoitar no campo e levaríamos o dobro do tempo para realizar a atividade.
Uma pessoa só volta correndo para ser resgatada pelo helicóptero porque simplesmente já vivenciou a experiência de percorrer e permanecer nessa região do parque em todos os níveis possíveis. Vários dias, com frio, com sol excessivo e por aí vai.
Por mais difícil que seja um campo; para pesquisadores que gostam da natureza vale o mantra: mais vale um dia ruim de campo; do que vários bons de escritório!
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Marina Xavier da Silva
Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.