A MINHA PRIMEIRA CAPTURA DE ONÇA-PINTADA

Para se capturar uma onça-pintada (Panthera onca) é preciso, antes de mais nada, alguma evidência da sua existência num espaço relativamente reduzido de possibilidades. Saber que existem onças-pintadas historicamente no Parque Nacional do Iguaçu não nos dava muita vantagem. E isso era tudo que tínhamos em 2010; ano de ocorrência desse relato. Estávamos recém iniciando as pesquisa científicas com este majestoso felino e não tínhamos muitas pistas para armar um plano de captura.

Fim da tarde do dia seis de maio de 2010 e uma ligação de um vizinho do Parque Nacional do Iguaçu pôs fim ao retorno para casa. Uma onça havia predado um bezerro e fugiu ao ser vista pelos funcionários da propriedade. Lá fomos nós então, seguros de que seria um ataque por um puma (Puma concolor), espécie de onça que também habita e compete com a sua prima maior, a onça-pintada, nas matas da região.

Realizar visita de reconhecimento de ataque de onças a criações domésticas era uma das tarefas mais desafiadoras entre as nossas atividades, já que se tratava – de antemão-, de um conflito genuíno de interesses: de um lado posavam pesquisadores científicos reconhecendo e defendendo as necessidades de predadores naturais; do outro, moradores e produtores rurais assustados e contabilizando prejuízos. Uma conta muito difícil de equalizar, multifacetada e carregada de emoção de ambos os lados. Um imbróglio. Não tem palavra mais perfeita para definir o que era lidar com essa situação.

Incorporando a versão detetive

Corpo do bezerro abatido encontrado ainda quente, rastros de onças existentes e frescos. Pronto. Já tínhamos muito. Talvez não o suficiente, mas muito! Lidar com a situação de conflito com os vizinhos não era tarefa que eu gostava, mas elucidar e tentar esclarecer o quebra-cabeça do evento de predação, encorpando quase uma entidade de Sherlock Holmes, isso eu gostava. Obviamente, isso também, como todas as demais atividades profissionais, foram aprimoradas com o tempo.

Tudo importa neste contexto. Qual a presa foi abatida. Posição que a ela ficou. Como se deu a morte, se foi pescoço quebrado ou se foi por asfixia, por qual parte o predador iniciou sua refeição. Se foi arrastada e por qual distância. Enfim. É preciso olhar com olhos treinados e desconfiados. Afinal, muitas outras coisas matam criações domésticas que não onças.

A presa abatida havia sido muito pouco consumida porque a onça foi pega no flagra por um funcionário da propriedade e descrita, para nós, como um puma. Dali pouca coisa conclusiva tirei. Mas andando pela propriedade, me deparei com outra carcaça de outro bezerro, morto no dia anterior muito consumida e um rastro pequeno, digno de pertencer a um puma, porém, arredondado demais para meu toque por simetrias. Confesso que demorei um pouco a acreditar na traição que meus olhos davam à cena já preconcebida de puma.

Alguns sinais de desordem no ataque também foram adicionados a dramaturgia compondo um desfecho na minha cabeça. Olho no relógio e temos pouco tempo para terminar aquele serviço já que está escurecendo e é hora de a onça tirar vantagem no terreno. De posse do bem mais precioso daquela cena, voltamos ao Parque para buscar algumas armadilhas fotográficas. Pronto. É quase noite e nosso serviço está finalizado. Armadilhas fotográficas devidamente instaladas na presa que restava ali abatida e parcialmente fixada por nós. Se o predador voltasse, ele teria alguma dificuldade para retirá-la dali, permitindo tempo para um bom registro fotográfico. Sim! Reconheço. Boa parte é investigativa e outra, ainda melhor, é devida a essa ferramenta tecnológica tão fundamental para pesquisadores de fauna tímida, como são as onças.

Disputando com a onça

Na manhã seguinte, fomos checar a situação da propriedade com o gado abatido. Olhamos as câmeras e, para nossa grata surpresa, uma onça-pintada havia sido registrada. Meu coração acelerou. Eu sabia que tínhamos uma esperança e chances de captura. A primeira do projeto!

Eufóricos, demos início ao planejamento de captura. Entre várias idas e vindas para buscar armadilhas para captura no parque, corro checar a identidade da onça no nosso álbum digital. Reconheço o meliante. Um de dois jovens irmãos machos de onça avistados com certa frequência pela região turística e residências dos moradores do Parque, neste mesmo ano. Até aquele momento, os irmãos eram sempre avistados juntos e ainda não tinham recebido nomes. Agora, estávamos obcecados e focados na captura, mas igualmente apreensivos se os danos à propriedade teriam sido obra de apenas um deles (o único registrado na armadilha fotográfica), ou ambos os irmãos.

De volta à propriedade, fomos eu e meu amigo mateiro do projeto e dois estagiários, atrás de localizar os restos do gado que ela havia se alimentado madrugada afora. O mato deitado e o cheiro no animal morto norteavam as buscas. Encontro a carcaça do gado e comunico aos demais. Fomos então buscar e posicionar armadilha de onça; uma gaiola de ferro pesada suficiente para garantir uma onça muito brava lá dentro. Voltamos então para buscar o resto da carcaça do bezerro para colocar na armadilha como isca, mas… Cadê a carcaça?

Armadilha de ferro para captura de onça-pintada
Equipe de profissionais e voluntários carregando a pesada armadilha para captura de onça-pintada

Pronto! Estava óbvio! A onça ou as onças estavam ali, conosco. Disputando aquela carcaça com o mesmo interesse e persistência que a gente. A ela(s) não havia dúvidas sobre o direito e pertencimento. A nós…Bem, a nós um direito usucapião. Um direito de vínculo aflorado por tanto esforço em buscar informações mais precisas sobre a situação da espécie na natureza. Um direito voraz por montar um quebra-cabeça de fatos sobre elas que nos deixava ousados, destemidos e muito semelhantes a elas. Ao longo da minha jornada com os predadores fui me tornando, pouco a pouco, cada vez mais semelhante ao animal que tanto buscava. Me pertencia a floresta. Tinha necessidade dela. Farejava e encontrava evidências de bichos com facilidade.

A captura de onça-pintada começa a ganhar a tensão devida

Decidi, talvez não em sã consciência, continuar essa disputa e insisti em reencontrar os restos da presa. A cobiça dela(s) pela presa abatida pulsavam nas minhas veias. Os instintos dela(s) se misturavam aos meus. Eu sabia que ela(s) estava ali. Eu sabia que ela(s) tinha vantagens na camuflagem. Eu olhava ao redor, o cheiro era forte, eu sabia que tinha ultrapassado meu lado racional, eu sabia que não farejava e olhava ao redor com olhos comuns. E foi com eles que eu, finalmente, a fitei. Mas, sobretudo, fui fitada. Fui hipnotizada por aqueles olhos complacentes e amarelos de onça. De onça amarela meu olhando. De apenas uma única onça me encarando de forma respeitosa e curiosa. Ela não demonstrou medo. Não se sentiu ameaçada. Não esboçou nenhum indicativo de querer esbravejar comigo pelo que era dela por direito. Ao contrário. Senti que me alma foi ao céu em êxtase.

Era a primeira onça que eu via na natureza. Ela ficou um tempo ali. Não saiu quando tentei, com a voz meio trêmula, afugentá-la. Foi quando o meu companheiro de trabalho finalmente viu o que eu estava vendo e tirou o facão da minha mão para bater com ele em uma pedra espantando-a dali, interrompendo momentaneamente, nossas trocas de olhares. Eu nunca vou esquecer esse olhar. Eu esperava alguma demonstração de força, um olhar repreensivo e um ranger de dentes. Ao contrário, senti que ela queria que eu a visse, como se me oportunizasse romper preconceitos, medos, ao mesmo tempo em que me proporcionava que eu transbordasse os bons sentimentos que fluíam dentro de mim naquele momento.

Eu não sei se isso tudo levou mais de um minuto ou algum minuto sequer. Ela virou, deu alguns poucos passos e por mais que eu não tivesse piscado, eu a perdi de vista na perfeição da sua camuflagem com a floresta, deixando-me boquiaberta. Passei algumas noites digerindo o encontro, o olhar penetrante e assimilando o vínculo que se firmara.

Sete anos depois, descobri – a duras penas – a profundidade e a intensidade daquilo que se iniciou neste encontro e nos outros acontecimentos que foram se somando ao longo dos anos. Eu havia me transformado. De tanto viver e andar pela floresta, havia criado raízes. Não tenho como definir o que me tornei nos anos que trabalhei no Parque Nacional do Iguaçu, mas sei o quanto me custou emocionalmente me desvincular de lá.

Mas afinal? Para quê capturar o pobre animal?

8 de maio de 2010, macho jovem, 42 quilos, Pança.

Procedimentos médico-veterinários durante a captura de onça-pintada
Procedimentos médico-veterinários durante captura e contenção de onça-pintada para fins de pesquisa científica

Pança foi o nome carinhoso que demos então a jovem onça de olhar penetrante, capturada com sucesso pela equipe, na manhã seguinte. Toda honra e glória à carcaça mais cobiçada do planeta! O que restara dela ainda alimentou a onça durante o tempo em que ficou na armadilha e, por conta disso, originou o apelido ao empanturrado animal.

Pança foi marcado com um colar que mandava informações da sua movimentação pela paisagem, via satélite. Nós coletávamos a informação de tempos em tempos pela internet. É justo que eu esclareça que a captura de onças, dentro do âmbito da pesquisa científica, não tem absolutamente nada de heroico, apesar da minha narrativa aflorada pelos meus sentimentos mais selvagens.

A captura de onças-pintadas (e demais felinos selvagens) tem objetivos claros e todo respeito ao bem-estar do animal são colocados em prática por uma equipe qualificada. Um animal capturado nos dá chances únicas e raras de coletar informações sobre sua saúde e genética, tudo isso com todas as suas funções vitais sendo monitorados por médicos-veterinários durante todo o procedimento. A marcação, por sua vez, é realizada com um colar com peso adequado, desenvolvido por empresas de tecnologia com longa e histórica colaboração de equipes de campo que buscam equalizar um equipamento eficaz na coleta e transmissão de dados e com mínimo impacto ao animal.

Vale lembrar que buscávamos entender como estava a população de onças, ou seja, todas as onças que vivem na região abrangida pelos Parques brasileiro e argentino, a partir, da informação que alguns indivíduos somente, traziam para a gente. Ou seja, informação extrapolada para todos com base naquilo que vamos coletando mais criteriosamente com alguns poucos. Nenhum indivíduo marcado e monitorado deixou ou demonstrou reter ou alterar seus comportamentos pelo fato de estar marcado.

Pança foi uma dessas onças valentes que contribuíram pelo coletivo! Suas andanças, apesar do pouco tempo que permaneceu com o colar, geraram informações bastante curiosas sobre o uso da paisagem do Parque e fora dele. Pança se deslocava, prioritariamente, entre a região turística do parque e fora dele, acompanhando a mata ciliar do Rio Iguaçu. Seu avanço para fora da Área Protegida era notoriamente interrompido pela falta de proteção ciliar.

Durante este trajeto “desprotegido” do Parque, porém acobertado pela mata ciliar, Pança visitava propriedades rurais com as quais usurpava alimento humano: galinhas, porcos, cachorros domésticos. Informações que íamos coletando concomitantemente ao seu monitoramento, já que a informação da localização do animal, – no caso específico do colar do Pança -, não era em tempo real. Nós tínhamos acesso ao deslocamento pretérito do animal e, em tempo real para queixas e reclamações de perdas de criações por vizinhos do Parque. Passávamos dias gerenciando conflitos do comportamento “indisciplinado” do Pança e tentando manter a comunidade informada e consciente sobre a importância do animal na natureza e a necessidade e proteger melhor a criação.

Pondo fim ao monitoramento da onça marcada

Certa noite, encontramos uma onça com colar na beira da rodovia de acesso as Cataratas do Iguaçu. Prontamente, ligamos para os parceiros da Argentina pensando se tratar de uma onça adulta marcada por eles: o Guacurari, cujo colar havia deixado de enviar sinal. Não havíamos reconhecido o nosso jovem Pança ali, tão assustadoramente mais crescido. Espantados com o porte que ele havia adquirido entre a captura e este encontro, resolvemos dar o comando para que o colar se desprendesse de seu pescoço. Esse comando é feito a distância sem machucar o animal. Sim! Um grande viva a tecnologia novamente! Depois de solto do animal, o colar passa a emitir um sinal, em ondas, com uma frequência “de resgate” diferenciada e com prazo para acabar. Esse é o tempo que temos para localizar o colar no meio da mata e resgatar toda a informação preciosa contida e armazenada nele.

Mesmo com dois meses apenas de monitoramento, aprendemos claramente duas grandes importantes lições para a conservação das onças da região. A primeira indicava que matas ciliares, cuja proteção é determinada por lei no Brasil, são fundamentais para o deslocamento e busca de alimento destes animais na paisagem. Principalmente, para machos em busca de novos territórios. As tentativas de Pança de, talvez, expandir seu território para além do irmão ou outros machos, foram claramente impedidas pela interrupção da proteção vegetativa. Ou seja, aplicar a força de lei, pura e simplesmente no Brasil, pode contribuir e muito para a conservação da natureza.

A outra grande lição, mais polêmica e desafiadora, consistiu na evidência de que para conservar as onças era necessário trabalhar com as pessoas, mais especificamente, com os vizinhos e criadores de animais domésticos. Enquanto perambulava pela região turística e protegida do Parque, Pança recebia uma espécie de aceitação justificada de compartilhamento do espaço comum com milhões de visitantes. Fora do parque e comendo a comida dos humanos, todavia, fomentava a antipatia e o algoz desejo de sua execução.

Apesar do nosso esforço, das inúmeras reuniões e palestras com os moradores locais, nós nunca mais tivemos evidências da sobrevivência do Pança no Parque, tempos depois de perder o acesso às suas localizações. Apesar de compreender a dificuldade de lidar com a presença de um predador deste porte e das perdas econômicas possíveis no ambiente rural; onças e humanos armados nunca competiram justamente por recursos. O impacto do abate de onças é tão ineficaz quanto dramático para a população de onças remanescentes.

Lidar com essa indigesta relação era um fardo oneroso no dia dia de trabalho de conservação.

Equipe  de pesquisadores envolvidos na captura da onça-pintada
Equipe orgulhosa e esperançosa com as novas possibilidades de conhecimento para a conservação da espécie na Mata Atlântica

Conheça essa narrativa na versão do grande jornalista Marcos Sá Correa

O relato dessa minha primeira captura foi descrito na coluna do jornalista Marcos Sá Correa. Claro…Muito melhor na arte de descrever fatos que eu! Para ler a reportagem, acesso o site aqui!

Marina Xavier da Silva

Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.

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