SAMPA

Sampa. Onde nasci e cresci só soube depois. Atrevido atrevido mesmo não era quem voltada pra casa, tarde da noite desafiando o cansaço e a insegurança.

Atrevido era nascer casa. Toda casa nascida em SP era engolida, tempos depois, por algum arranha céu.

Sampa vista de cima evidenciando enormes arranhas ceus. Sampa com céu azul e poucas nuvens.

Imagem retirada do site Pexels. Autoria de Kaique Rocha

É por isso que você não se acha em sampa. Não existe referência que dure tempo suficiente para fazer registro.

Da avenida tal, terceira direita, depois da casa amarela ou da aroeira. Enfim. Siga a rua e o CEP, mas…certifique-se; caso seja uma casa, confirme a existência da mesma um pouco antes de sair de casa.

Periga ela virar mais um buraquinho, onde engenheiros habilidosos constroem prédios cada vez menores onde, de fato, passasse pouco tempo.

Afinal, um paulistano típico trabalha muito e tem vida social muito ativa. Vive-se pelas ruas, que são tão efêmeras, como são as casas, cujos paulistanos nem mais se avassalam de perde-las porque de efêmero já basta a vida e é melhor vive-la intensamente, 24 horas desviando da violência de quem vive, sem casa, sem prédio e, e às margens.

As margens da grande Sampa também é Sampa ou já nem sabe-se mais onde é o fim e o começo daquela cidade.

Porque todo mundo quer, ao mesmo tempo, entrar e sair de lá. Ao mesmo tempo literalmente.

E esse tanto de gente indo e vindo ou fugindo ou migrando, vira um não ir pra lugar algum. E todo mundo parado, sem trégua, sem opção, acaba virando a opção de tanta gente, viver do parado.

Ali ambulam-se ofertas: de água, de doces, de comidas, de entorpecentes, de pedidos de esmola, mas também da leitura, do estudo, da reunião, tudo ali ao mesmo tempo; do tempo do tráfego.

Treco doido de entender.

Muito se vive no parado e de tanto viver do parado, o parado deixou de ser ele mesmo para ser outra coisa.

Otimizado, recebeu até fluxograma. Um bom morador de São Paulo é notoriamente um hábil gerenciador do transito que não flui.

São Paulo para mas não para. Para de trânsito, mas não para o paulistano. Agitado, ativo, conectado, culto, oculto, bêbado, esportista…

Tem espaço pra todos na cidade sem espaço. Empilha-se casa em cima de casa, faz o prédio, empilha o barraco em cima do outro nasce a favela.

Tem bairro blindado de favela e tem a favela blindada de privilégios. E essas coisas se emendam e cada um usurpa como pode, das ofertas e demandas que rolam em cada nicho porque sampa não para.

E nesta cidade sempre tem muita oferta de emprego e também muitos desempregados ofertados.

Tem trem, tem metro, trólebus, ônibus, bikes, patinetes. Todos caçando jeito de andar na cidade ou perambular como fazem os inúmeros que não conseguem dignamente locomover-se por sampa.

Tem também grandes acumulações humanas, que trocam cachimbos, sexo, agulhas, afetos e desafetos.

E diante de tanta gente perdida, sem preocupações ou com preocupações demais surge em grande quantidade (certo que sempre inferior ao número de necessitados) pessoas solidárias, oferendo sopa, roupas, cobertas, tratamento de beleza, conselhos e alguma dignidade.

E nesse zum zum zum de ritmo vive Sampa e paulistanos que já nem se percebem atípicos, afinal o maluco sou eu! De tanta coisa vive a cidade. A cidade de casa aflitas por serem casas e de gente aflita sem casa.

Entendi, só quando deixei a grande cidade. Ali, quase tudo se torna desnecessário. A minha casa, junto com as vizinhas, certo que não mais “a mesma casa” sobrevive numa espécie de linha de resistência, num bairro extremamente mutável.

E esse conjunto de circunstâncias torna Sampa, – numa escala pessoal – um eterno “déjà vu”, onde as memórias esfolam-se em (re)criar miúdas lembranças. Aplica-se, em doses imperceptíveis, a máxima do desapego.

Está tudo no fundo dos escombros de mais uma demolição: nossos assombros, nossas percepções sobre os fatos, nossas inutilidades. Apressa-se em reconstruir algo novo ali sem nos permitir queixas e lutos.

Num piscar de olhos entra-se no ciclo da efervescência da cidade que não para. É quase um processo involuntário entrar no ritmo dela. Tanto que quem vem de fora, amedronta-se.

Energiza-se o paulistano na hesitação do movimento. Na mágica contradição do movimento da cidade parada. Sampa é, de fato, desobediente. Definitivamente não é para amadores. Nem para casas…

Marina Xavier da Silva

Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.

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