POETIZANDO O MATERNAR

Uma mãe segura uma criança pequena no colo que  lhe abraça e beija. A mãe está de olhos fechados , sorriso largo em plena satisfação. Ao fundo a imagem desfocada de uma praia
MATERNIDADE (a minha)

Na tentativa de me descrever mãe precisei achar o meu avesso. É que avesso de mãe talvez seja a chance da gente se ver não mãe; uma versão quase inalcançável. Foi então que ao me desavessar me vi assim feito roupa do avesso, sem formato de nada. Se calça; se blusa, certo é que sendo do avesso; avesso é. É tudo um emaranhado de pano cujo formato original, agora é formato de avesso e ponto final. Não sei mais retornar ao que eu era. Parece que eu nasci mãe e, a partir daí comecei a contar os dias. Não encontro muito espaço de tempo para cultuar essa permanência divina na Terra antes de ser mãe. Logo me ocupa a mente com um sorriso e cheiro das filhas. É difícil explicar isso para quem não precisou fazer este resgate de si mesma. Verdade que existem outras coisas que não a maternidade que te fazem recontar os dias a partir de uma nova percepção. A minha é, sem sombra de dúvida, a maternidade.

Agora, vem cá!
Se permita!
Quer mesmo saber o que é ser mãe?

Imagine-se pelad@!
No banho!

Agora procure sua carteira. Ande! Procure!!!!! Pode ser seus óculos, celular, qualquer objeto inseparável. Assuma, temporariamente, a sensação de vulnerabilidade que a água impõe de separação aos objetos de valor.


Bem...

Pronto!

Você chegou muito próximo da experiência de ser mãe

Uma mãe, não tira um filho um milésimo de segundo do pensamento. Não é exagero. Uma vez mãe, não há a menor chance de você se despir desse compromisso honroso. Por mais ocupada, concentrada que esteja, não tem como desligar o botão mãe. É tão presente que você nem se esforça para lutar com isso. E não pensem vocês que é isso que faz com que as mães se sintam sobrecarregadas. O subjetivismo da sobrecarga só existe, igualmente, para quem não é mãe. E é tipo conto de fadas, segue sendo tratado há anos pela sociedade como faz-de-conta.
Mas... O texto não é sobre isso.

A impregnação mãe-filho é que faz da gente tão suficiente

Ora veja...
engana-se você se achou que esse texto enaltecia a suficiência aos filhos!

Eu me refiro a mim mesma.

Ser mãe

para mim

é ser suficiente!

Aquilo que basta!

Que satisfaz!
MÃEZINHA

Sou anulação
sou noites mal dormidas
ressurjo no escuro
onde tudo é oculto
e ocultado
sou tudo menos superfície
nunca contornos
guerreira me define bem
embora covardemente
junto cacos
tenho fluência em filhos
suas dores e lamentos
sou algo novo cujo passado
foi saqueado
atropelado e remoldado com as pedras que me esfolaram
e com os cheiros mais significativos da vida
o de bolsa rompida
o de vérnix
de placenta
sutura
e leite materno
e nenhum desses também
Sou onça e ternura
sou esgotamento
exaustão
estou sempre a disposição
Sou renúncia, mas não atrofia
tenho certeza de que pouca coisa não sou
tudo em mim arde e assopra
sou chocolate
e jiló
meu tempero
é agridoce
meu perfume
é de alho
mãezinha
é o caralho

mãe e filho em momento descontraído da brincadeira na motinho da criança. A mãe atrás e o  menino na frente. Ambos sorriem divertidamente
UM DIA FODA

Acordou
a casa a mil decibéis logo cedo
choro, demanda, café da manhã no chão
briga entre irmãos
livro emprestado do amigo rasgado
a adolescente bate à porta com força pela segunda vez naquela manhã.
com a força derruba o quadro da família

Telefone toca, a sogra
queria conversar com as crianças
ajeita
insiste
força um: - diz oi para vovó!
O pequeno pega o celular com as mãos cheias de manteiga
derruba a vó no chão
e junto o celular da mãe
gritos

na geladeira
nada para o almoço
dia chuvoso
teria que improvisar
Faz um macarrão
alho e óleo
é o que tinha
vira para servir e não vê a motinho do mais novo, largada atrás do fogão

O almoço no chão
o óleo a perder de vista
trovão
acaba a luz
crianças choram
a fome
o medo
a raiva da mãe
o fardo

senta-se no chão
cabeça entre as pernas
encolhe-se
quase uma posição fetal

A chuva
o ritmo
o mais novo se aproxima
peito dele na altura da cabeça da mãe
ela escuta
a chuva e a respiração do pequeno

ela escuta o único som possível
o da absolvição

por alguns minutos
é só isso que ela escuta

ela levanta a cabeça
encara a realidade novamente
o irmão do meio começa a comer o macarrão do chão
a adolescente ri
todos riem

todos riem muito
e por muito tempo

A luz volta
e coração
e a chuva
desaceleram

POTÊNCIA 

Se me perguntarem por que são
as mulheres que possuem os meios
para dar à luz, eu diria

gestar
parir
amamentar e
na maioria das vezes
cuidar
acolher
educar
Não exigem músculos, primordialmente

Requer a capacidade de
Morrer
Renascer
Incessantemente

E isso, infelizmente,
É coisa de gênero!

Escrevi os textos em fases e momentos distintos da minha vida. Releio-os e, não importa a fase do meu maternar, eles ainda fazem sentido. Não me arrependo nunca da opção pela maternidade. Não me defino como uma pessoa que romantiza o tema, mas também não sou de ficar racionalizando/ponderando muito a coisa.

Eu não sei se é possível optar racionalmente pela maternidade, assim tipo um check list de ganhos e perdas. Enfim, gostaria que isso funcionasse para mim e talvez para todas. Já pensou um aplicativo que você vai adicionando um tanto de coisa e no final ele diz: apto ou inapto para a maternidade??

Na completa incapacidade para aprofundar o tema de forma pragmática, fico com opção que sempre me fez bem: poetizar… Talvez você se identifique nos poemas. Conta pra mim?

Marina Xavier da Silva

Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.

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