INVERTEBRADOS MARINHOS INTELIGENTES: POLVOS, SÉPIAS E OUTROS CEFALÓPODES

Curiosidades, belezas e os testes do marshmallows

Invertebrados e inteligente? Tem algo errado nessa molenga história!

É bastante comum que a vida marinha e os grandes mamíferos sejam fontes importantes de inspiração para muitos dos admiradores e profissionais da vida selvagem. Os oceanos e seus mistérios são o habitat de inúmeras espécies surpreendentes, coloridas, bizarras por vezes.

Adicionando ainda o fascinante vai e vem do mar, suas ondas, cores, profundidades e temperaturas diversas. Os grandes mamíferos, por outro lado, encantam pelas semelhanças conosco, sobretudo. Nosso pertencimento filogenético faz com que nos identifiquemos com vários comportamentos e semelhanças. Somos capazes de reconhecer diversas habilidades e atribuí-las algum nível de inteligência, aprendizado, complexidade, entre outros aspectos.

Organismos marinhos que atraem nossa atenção tanto quanto os mamíferos? Temos!

Para resolver esse dramático (contém ironia) conflito de interesses bastaria então, escolher trabalhar com os grandes mamíferos marinhos! Pronto! Juntaríamos o cenário fabuloso, com a inteligência e a admiração aos bichos peludinhos do mar! Resolvido!

…Pero no mucho!

Não que não seja uma solução de respeito (rsrs), mas os mamíferos estão longe de ser os últimos biscoitos do pacote! E ainda bem, não é mesmo? Em se tratando de comportamentos complexos os cefalópodes disputam o cenário com um time e tanto! Sim! Caras molengos, sem coluna vertebral podem demonstrar sinais de inteligência e consciência. E ainda vem com cores brilhantes?? (Cadê a licença poética que me desqualifica seu eu usar aqui um emoji com cara de espanto?)

Cefalópodes: quem são eles?

Cefalópodes são qualquer membro da classe Cephalopoda que inclui moluscos marinhos agrupados em duas subclasses; Nautiloidea (náutilos) caracterizados por possuírem uma grande concha e Coleiodea (polvos, sépias e lulas), cujas partes moles encobriram as conchas (completamente ausentes nos polvos). Os náutilos vivem em águas profundas (100 – 300 m), em proximidade com os recifes de corais, são solitários e se locomovem devagar por orientação olfatória e com ajuda dos seus 90 tentáculos.

Os coleiódes, por sua vez, são encontrados em todos os ambientes marinhos, englobando mais de 700 espécies, se alimentando de crustáceos, bivalves, peixes e se utilizando de uma variedade de estratégias para surpreender suas presas. Estes lindos seres marinhos são capazes de alterar rapidamente suas colorações e aparências com diferentes propósitos, como camuflagem, alarme, ameaça, atração sexual, por exemplo. Possuem 8 braços com alta flexibilidade e autonomia, sendo que lulas e sépias possuem, adicionalmente, dois apêndices coletores de alimento maiores que os braços. Possuem visão acurada, bolsas de tinta para persuadir predadores, locomoção por jato propulsão e um sistema nervoso super avançado.

Os quatro representantes da Classe Cephalopoda: um nautilo com sua concha grande onde só se vê seus olhos e tentáculos medianos para fora da concha. Um polvo imponente com sua cabeça grande e tentáculos com ventosas. Sépias e lulas se diferenciam nos delahes das pupilas e nas nadadeiras laterias.
Representantes da classe Cephalopoda. Acima, à esquerda, um nautilo. Acima, à direita, um polvo. Abaixo, à esquerda; lulas e abaixo, à direita, uma sépia.

Que atributos os tornam tão diferenciados?

Mas, de fato, sobre que habilidade neurais estamos falando que valha um post. Bem, de forma bastante resumida, iniciamos com a surpreendente capacidade de alterar rapidamente a coloração, nos coleóides. Neste pacote contêm não somente alteração de coloração corpórea, como também bioluminescência e alteração de textura, ou seja, capacidade de criar protuberâncias e tubérculos. Tamanha flexibilidade de adaptação visual são fundamentais para o sucesso de cortejo, proteção, intimidação e comunicação monoespecífica, sendo um dos primeiros sinais a chamar a atenção dos cientistas para discutir algum grau de inteligência.

lulas, sepias e polvos exibindo cores translucidas, chamativas e extremamentes camufladas em, lulas, sépias e polvo , respectivamente
Padrão translúcido de uma lula à esquerda, eficiente para não ser vista na coluna d’água. Coloração chamativa entre machos de sépia, no meio. E camuflagem eficiente em polvo à direita.
Fonte: Hanlon, R.; Allcock, L.; Vecchione, M. Octopus, Squid & Cuttlefish: The worldwide illustrated guide to cephalopods. 224p. 2018.

Ao longo dos anos outras habilidades intrigantes foram observadas, sobretudo em polvos, como a capacidade espacial e visual de navegação para retornar às suas tocas, por exemplo, sustentando a hipótese de criação e armazenamento de memória por um longo período.

A habilidade de reconhecer padrões e formatos quando submetido a testes de recompensa ou punição, resolver problemas para obter comida como abrir um compartimento, por exemplo. Com o passar do tempo, os polvos não só abriam os compartimentos mais rapidamente, como também armazenavam essa memória quando submetidos aos mesmos teste tempos depois.

Aprendizado por observação de outros indivíduos também foi testado e confirmado e até mesmo uso de ferramentas e interesse em brincar. Curiosamente, polvos demonstraram também sinais de personalidade, uma vez que reagiram individualmente e diferentemente ao mesmo estímulo.

Polvo leva a fama, mas ele não é o único invertebrado inteligente do mar

Mas então seria o polvo o único cefalópode a sustentar a fama inteligente do grupo? Sim e não! A maioria dos estudos são realizados com este organismo, é verdade. E avaliações anatômicas comparativas entre as diferentes espécies de coleoides destacam uma melhor e mais potente organização neural nos polvos. Todavia, estudos recentes com os outros integrantes da classe Cephalopoda tem surpreendido os pesquisadores. Os cientistas e amantes das sépias, logo trataram de ir em defesa da inteligência do bicho e pouco a pouco novas descobertas vem surgindo.

A famosa pesquisa de recompensa do marshmallow realizada com crianças na década de 70 orientou uma versão adaptada de estudos para sépias em laboratório. O estudo previa avaliar a capacidade de autocontrole, um importante sinal de inteligência. Relembrando, a versão feita para humanos consistia na entrega de dois marshmallow, após 15 minutos de espera para às crianças que aguentassem não comer o primeiro. Neste estudo metade das crianças conseguiam esperar pela recompensa.

O estudo com sépias partiu, primeiramente, da seleção de duas preferencias alimentares dentro de um cardápio conhecido de presas. Posteriormente foi construído um design de experimento onde as sépias deveriam escolher entre um dos dois itens alimentares.

Num primeiro momento, uma caixa contendo o alimento preferencial identificada com um círculo era colocada no aquário e a porta de acesso abria-se rapidamente fazendo com que a sépia tivesse acesso ao seu item favorito. Em um outro momento, uma caixa identificada com um triângulo e contendo o mesmo item favorito era colocada no interior do aquário, mas dessa vez, com um pequeno atraso de abertura para acesso ao alimento.

Em um passo seguinte as duas caixas (com e sem atraso de abertura), foram introduzidas no aquário, cada uma contendo o mesmo item preferencial de presa, mas dessa vez, sem nenhuma identificação. Tão logo a caixa sem atraso abria a porta, a sépia rapidamente acessava o alimento, sendo o item da caixa com atraso; retirado prontamente.

Por fim, novamente as caixas contendo as identificações círculo para nenhum atraso na abertura e triângulo para atraso, foram colocadas no aquário, respectivamente com os itens menos e mais preferidos pela sépia. Sépias foram capazes de sucumbir a tentação de acessar o item menos preferido e prontamente disponível da caixa identificada com um círculo, esperando pacientemente por sua presa preferencial da caixa identificada com triângulo, mas com atraso para abertura.

desenho esquematico do experimento de recompensa, realizado com sépias em laboratorio demonstrando com sépias também são invertebrados marinho inteligentes
Design do experimento de autocontrole com sépias, em laboratório
Fonte: Schnell, A. K. et al. Cuttlefish exert self-control in a delay of gratification task. Proceedings of the Royal Society B. 2021

Hipótese ecológica da inteligência

Impressionante, não? No vídeo acima, fica claro que evidências de inteligência são descritas e particularmente associadas aos animais sociais (primatas, corvos e araras, por exemplo). Alguns comportamentos inerentes à vida em grupo, tais como, colaboração, interação constante e senso coletivo, podem ser os principais motivadores para o desenvolvimento evolutivo de inteligência.

Animais solitários, por sua vez, teriam evolutivamente menores chances de desenvolverem habilidades comportamentais complexas. No caso das sépias o comportamento de espera pela recompensa, pode estar associada ao seu legado evolutivo de se camuflar tanto para se proteger de predadores, quanto para ter sucesso no acesso às presas. Se expor excessivamente para capturar uma presa de menor interesse teria, então, poucas vantagens.

Mas debater o conceito de inteligência, por si só, merece um post único. Descobri que o nome mais adequado para não me comprometer com o conceito e a temática inteligência é, na realidade: habilidade cognitiva! Chique feito marshmallow no espeto!

Para todos os efeitos os polvos e as sépias são super habilidosos cognitivamente!

Referências bibliográficas

Catalani, J.A. Cephalopod Intelligence. An Amateur’s perspective. American Paleontologist. 16(3). 2008.

Hanlon, R.; Allcock, L.; Vecchione, M. Octopus, Squid & Cuttlefish: The worldwide illustrated guide to cephalopods. 224p. 2018.

Schnell, A. K. et al. Cuttlefish exert self-control in a delay of gratification task. Proceedings of the Royal Society B. 2021

Marina Xavier da Silva

Bióloga graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo – USP. Iniciou sua carreira no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, onde trabalhou por 13 anos, nove deles dedicados à coordenação de um projeto para conservação da onça-pintada no Brasil e Argentina. Mãe da Lia e da Cléo.

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