DONA RAIMUNDA

Das muitas histórias da casa de Dona Raimunda todas continham muito cheiro de café, bolo de fubá e cuscuz: o de frango caipira que era o mais pedido entre os filhos e netos que se reuniam por lá. A casa da Dona Raimunda cheirava a gostosuras e era aos pés da avó, na varanda da casa, que as três primas afoitas narravam e trocavam conversas sobre a maternidade.

Rafaela, Carla e Gisele.

As três meninas eram formadas em cursos superiores distintos, mas pareciam cursar a mesma universidade da maternidade a maneira como conversavam em atropelos.

Dona Raimunda ouvia atenta as histórias. Era ainda muito diligente e atinada, mas, sobretudo, vivida. Guardava histórias e conselhos com a mesma habilidade com que guardava quitutes diversos em suas latas e potes decorados (por ela, por sinal).

Lá, na varanda ouviu sobre disciplina positiva, terrible two, Bournout e outros tantos termos relativos a filhos. Estes por sinal, um total de cinco, compunham os frutos de Dona Raimunda com Seu Valdir. Coincidentemente, as três primas que engravidaram quase juntas eram as filhas dos seus três filhos homens. As outras duas filhas de dona Raimunda e Seu Valdir, tiveram filhos homens e, estes não se juntavam a roda de conversas fervorosas sobre maternidade.

Dona Raimunda ouvia sempre

Dona Raimunda era pura espera

Aguardava, sem pressa, a visita das netas sozinhas. Assim é que as julgavas disponíveis e isentas de vaidades. A casa velha, em cimento queimado impregnada de cheiros memoráveis, era um refúgio.

Rafaela foi a primeira das três netas a aparecer, naquela tarde, na casa da avó. Exaltava suas conclusões sobre o amadurecimento de Leo, seu filho mais velho. Apresentava uma lista de comprovações a avó, das quais ao que tudo indicava, Léo gabaritava em mais da metade delas o que dava justa comprovação de que ele já estava entrando na adolescência.

Dona Raimunda ouvia sempre

Dona Raimunda era pura espera

Ouvia sem interromper. Quando notava que a neta já estava comendo as primeiras bolachinhas achava brecha de dizer.

Sempre tinha uma história que as netas custavam a entender, não serem metafóricas

– Naquela época minha filha, conduzia a avó Raimunda, a gente cuidava o fim da inocência no jogo do mico. Que era quando a criança, já mais crescida, provida da cartinha maldosa, escondia ela entre as outras sem expressar nenhum descontentamento. Assim, o jogo seguia sem levantar suspeitas e o mico, infiltrado, permanecia oculto entre os participantes e as cartas sem risco. Era o meu jeito de observar a ‘cressância’ das crianças, dizia ela animada.

Carla, apareceu apressada na sequência. Cruzou com a Rafaela no contraturno do café com a avó. Trocaram rápidos perfis novos de Instagram que falavam sobre as demandas apresentadas no último encontro juntas, tiraram dúvidas sobre medicações e alergias até Carla pegar a primeira xícara de café e fitar, solitária, o semblante compassivo de Dona Raimunda.

Dizia estar exausta. Se sentia culpada por estar sempre gritando com os filhos

– Logo eu vó, que sigo à risca a cartilha da disciplina positiva!

Apressou em tentar dar novo significado ao que disse imaginando que a avó não entenderia o aquilo significava

Dona Raimunda ouvia sempre

Dona Raimunda era pura espera

Aguardava com sabedoria que tudo se esvaziasse. Quando notava que a neta já estava comendo as primeiras bolachinhas achava brecha de dizer

Sempre tinha uma história que as netas custavam a entender, não serem metafóricas

– Ah! Seu pai e seus tios e tias eram também igualmente difíceis. Mas eu tinha um segredinho para terem minha colaboração. Dizia a eles que guardassem os brinquedos antes do caramelo.

Carla pensando que a avó comprava a colaboração dos filhos a troco de balas. Se acomodou confortavelmente no seu ego dando salvas à sua maternidade assertiva.

Avó Raimunda esclarece: – Antes do caramelo, minha filha, era antes da cauda perder o ponto. Ou, no caso, caramelizar. Ou seja, tinha que ser muito rápido. As crianças esperavam ansiosas pela cauda de pudim. Gostavam de comer o pudim frio com a cauda bem quente, recém feita que era para dar aquele choque de sabores. Era aquele bando de crianças me incomodando ao redor do fogão. A depender da lenha, a cauda ficava pronta num segundo e bastava uma desatenção minha para eu perder o ponto e tornar a espera do doce um processo interminável. Não sei se por associação ao prazer do doce, ou a bagunça desse momento tão esperado lá em casa, os meninos sempre adoravam essa comparação. Raramente recusavam minha oferta associativa para guardar as bagunças.

Carla ri das ideias da avó a beija carinhosamente e engole o café despedindo-se dela.

Tarde da noite, chega Gisele junto os três filhos recém-saídos da escola, e um marido a tira colo. Está notoriamente cansada. Belisca o resto frio do almoço e desabafa. Seu cansaço é moral, a avó logo nota.

Fala que está sem dinheiro. Que se sente mal por não acompanhar tantas demandas dos filhos. Estes, mal e porcamente, acomodados no sofá da sala cada um com um celular na mão.

Dona Raimunda ouvia sempre

Dona Raimunda era pura espera

Quando notava que a neta já estava saciada achava brecha de dizer

Sempre tinha uma história que as netas custavam a entender, não serem metafóricas.

-Sabe o que mais eu gostava da minha infância, filha?

Gisele interrompeu a fala e deu total atenção a avó que quase nunca falava da sua infância.

– O que eu mais gostava era quando a gente se deitava de trança!

– De tranças nos cabelos, vó?

Não! De trança entre nós! Entre os irmãos. Por sorte com a presença dos meus pais também. Deitávamo-nos no chão de terra para ver as estrelas. Cada um emaranhado na perna um do outro. Ali eu não sabia se a perna era minha, se o braço na minha barriga era o meu ou do meu irmão Evaristo, de Darci ou de Jeremias. Fazíamos de propósito porque com a pouca luz era fácil enganar o cérebro!

Foram interrompidas pelo marido de Gisele que bocejando exigia pressa para retornarem para casa. Era dia de jogo do Goiás. Trocam beijos amorosos enquanto o avô Valdir invadia a casa. Ele nunca participava das conversas a menos que fosse solicitado.

Sozinhos na velha casa, Valdir indaga:

– Tudo bem com as meninas?

– Está sim! Embora elas não saibam disso. – Estão sempre a achar teorias para suas dificuldades. – Procuram tanto que acabam encontrando.

– Soluções? Pergunta seu Valdir

– Ambos, responde Dona Raimunda

– E você a distribuir conselhos, velha? Acha que vão ouvir o que nós temos a dizer?

– Eu não! Ando a distribuir o que tenho de melhor: café, bolo de fubá e cuscuz.

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